É válida a doação de um bem de família, na qual o devedor tem como principal objetivo ocultar e proteger o patrimônio doado, para frustrar o direito do credor, fraudando, portanto, uma execução?
Um credor ingressou com ação de cobrança para receber valores decorrentes de aluguéis em atraso. Antes de serem obrigados a pagar, os devedores transferiram seu único imóvel residencial para o filho. A doação foi feita três dias depois de serem intimados ao pagamento da quantia de quase R$ 378 mil.
O art. 1º da Lei nº 8.009 dispõe que o único imóvel residencial da família é impenhorável e não responderá por nenhuma dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, salvo nas hipóteses legalmente previstas.
Os devedores alegaram em juízo que não tinham por objetivo fraudar a execução. Como o pai enfrentava problemas de saúde, o casal teria decidido resguardar o filho doando-lhe o imóvel, evitando processo de inventário. Sustentaram que não teriam praticado nenhum ato que pudesse colocá-los em insolvência, já que não havia bens penhoráveis mesmo antes da doação.
O juízo de primeiro grau acolheu a tese dos devedores e concluiu que, mesmo sendo inválida a doação, não houve fraude à execução, tendo em vista que se tratava de imóvel que não poderia ser penhorado. Inconformado, o credor interpôs recurso para o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Esse Tribunal, desta feita, acatou a tese do credor e reformou a decisão do juiz, ao fundamento de que houve má-fé na conduta, afastando a natureza impenhorável do imóvel.
A questão foi solucionada pelo Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Recurso Especial n.º 1364509, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi. Ao analisar a lide, a Corte Especial considerou que, em regra, o devedor que aliena, gratuita ou onerosamente, o único imóvel onde reside com a família abre mão da proteção legal, na medida em que seu comportamento evidencia que, o bem não lhe serve mais à moradia ou subsistência.
Foram levadas em consideração, sobretudo, as circunstâncias em que realizada a doação do imóvel, onde deixou transparecer que os devedores, a todo custo, tentaram ocultar o bem, e proteger o seu patrimônio, sacrificando o direito do credor. Portanto, essa atitude importou não apenas em fraude da execução, mas também, fraude aos dispositivos da própria Lei nº 8.009, que trata da impenhorabilidade do bem de família.
Foram deixados de lado os precedentes da Corte Especial de não reconhecer fraude à execução na alienação de bem impenhorável, já que o bem de família jamais será expropriado para satisfazer a dívida. Sendo consideradas as conjunturas dos fatos, onde ficou evidenciada a má-fé do devedor e, ponderando-se os valores em jogo, entendeu-se que deve prevalecer o direito do credor.
A jurisprudência do STJ estabelece que a impenhorabilidade do bem de família, pode ser reconhecida a qualquer tempo e grau de jurisdição, mediante simples petição. As Súmulas nºs 364 e 486 estendem o alcance da garantia legal da impenhorabilidade ao imóvel de pessoas solteiras, separadas e viúvas, e também àquele que esteja locado a terceiros, se a renda obtida for revertida para a subsistência da família.
Entretanto, a proteção legal pode ser afastada quando o imóvel está desocupado, e não se demonstra o cumprimento dos objetivos da Lei nº 8.009/90. Também é afastada quando há o objetivo de fraudar a execução. Nesse sentido, prevaleceu o entendimento de que o bem que retorna ao patrimônio do devedor, por força do reconhecimento de fraude à execução, não goza da proteção da impenhorabilidade disposta na Lei nº 8.009/90. A jurisprudência aponta ainda que é possível, com fundamento em abuso de direito, afastar essa proteção legal.
Portanto, reconhecida a fraude à execução, declara-se a ineficácia da doação e afasta-se a proteção ao bem de família prevista na Lei nº 8.009/90, ainda que seja uma doação feita em benefício de filho menor.
Denis Farias é advogado
E-mail: denisadvogado@hotmail.com
Artigo publicado no Jornal "O Liberal", Caderno Atualidades, pág. 02, Ed. de Sábado, 23/08/2014.
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