terça-feira, 26 de abril de 2011

A Cortesã Lucíola e a história do direito Os Aspectos Jurídicos e a Cultura Jurídica desse Romance Urbano

A Cortesã Lucíola e a história do direito
Os Aspectos Jurídicos e a Cultura Jurídica desse Romance Urbano .

Por Denis Farias





Resumo:

A obra literária em análise é de autoria de José de Alencar, criador dos chamados romance histórico nacional. A mesma é classificada no grupo de romances urbanos do autor. Narra uma história de amor e paixão que o interiorano Paulo teve com a cortesã Lucíola, ao chegar à corte do Rio de Janeiro. Nesse trabalho, vamos investigar os aspectos jurídicos e a cultura jurídica do século XIX refletidas na obra, influenciadas por uma sociedade ainda escravista e patriarcal.

Palavras-chave: Romance. Casamento. Dote, Contrato, Família. Respeito, Prostituição. Adultério. Escravidão.

Logo no início do romance, no capítulo II, percebemos a visão da época, século XIX, na então colônia de Portugal, o Brasil , a respeito da instituição família . O autor retrata bem como era mal visto pela sociedade, uma moça nova ou mulher madura, passeando pela rua sem a companhia do pai, marido ou irmão. Apesar de Lucíola ser tratada por Paulo como “senhora”, ou seja, uma mulher de família, quando foi percebido que ela passeava só pela via pública, passou a ser notada como uma cortesã, uma prostituta.

Fica bem nítido o valor que a sociedade da época outorgava para o matrimônio, uma instituição jurídica que hoje na sociedade moderna está bastante desprestigiada. Hoje os relacionamentos são demasiadamente efêmeros, passageiros e quando muito, temos uma união sem compromisso, sem solidez. Antes, o valor para o matrimônio, para o casamento ancorado em um modelo patriarcal era tanto, que só o fato de uma mulher sair na rua sozinha, ou seja, sem um homem, seja pai, irmão ou marido, já deixava implícito que a mulher era uma cortesã.

Vale lembrar que nas várias fases históricas a família é vista como a base, os fundamentos da sociedade e sempre fica clara a influência da religião e da moral. A forma de constituição, porém, teve várias vertentes no tempo e espaço. No mundo oriental a prática comum era a poligamia, com exceção da Babilônia e no mundo ocidental a monogamia .

Percebe-se na obra que nas vezes em que Lucíola estava só nas ruas do Rio de Janeiro, andava com todo aspecto de uma mulher com família devidamente constituída, com todo recato e pudor, digna de uma “senhora”. No entanto, só pelo fato de não ter uma companhia masculina, é vista de forma preconceituosa. É vista como uma prostituta.

No capítulo III, a própria Lucíola em meio as suas confissões de desventura na vida, revela que inveja a felicidade das pessoas que têm uma família, e faz um paralelo com o amor desinteressado que há no seio familiar e o amor interesseiro em que vivem as mulheres cortesãs. Mas uma vez fica nítido o valor elevado, que se tinha pela instituição familiar, por conseguinte, pelo casamento.

Ainda no capítulo III, é notória a forma vil como se tratava uma prostituta na época, simplesmente pagando pelos serviços íntimos, sem se importar com a honra e o respeito da mulher. O homem que tratava uma prostituta com respeito, ou seja, como uma senhora, era alvo de chacota, de escárnio, como Paulo era tratado pelos demais personagens.

No capítulo V percebemos a nítida noção de direitos adquiridos, que ainda hoje, no Brasil, tem status de direito constitucional . Esses possuíam ampla utilidade na época, século XIX, porém usados pelos personagens de forma desvirtuada. Contudo, a sociedade machista como é refletida no Romance e de fato devia ser, pois ainda hoje é, estende esses direitos adquiridos sobre a mulher cortesã, ou seja, à que não tem marido, pai ou irmão. Seus amantes achavam que possuíam direitos sobre o corpo de Lúcia, apesar de ela lutar contra o caráter possessivo dos relacionamentos que tinha com os amantes.

O direito constitucional é um dos ramos da ciência jurídica, que historicamente existe a partir de um sistema ao qual já se integravam, ainda em forma rudimentar, os elementos território, população e governo. Logo, um sistema orientado por princípios reguladores da atividade de primitivos agrupamentos humanos, compreendendo assim aspectos da vida jurídica, política, social, religiosa e econômica, in Lições de História do Direito, p. 105, Nascimento, Walter Vieira do, Ed. Forense.

Ainda no capítulo V percebemos o aspecto contratual da relação com uma cortesã, como direitos e deveres de ambas as partes, tanto do amante quanto da prostituta. Sem dúvidas, tínhamos ali o início da regularização da prostituição no mundo e na Europa.

Em nível geral, o Direito das Obrigações entre os povos pode ser tomado como um conjunto de regras essenciais sobre a celebração dos contratos em suas várias modalidades, tais como: compra e venda, locação, arrendamento, empréstimo, troca, dação em pagamento etc. O instrumento de contrato, exceção dos romanos, prescindia de qualquer caráter formal . E assim, bastava que o acordo de vontade das partes não fosse contrário à ordem, ao interesse coletivo e à moral para ser juridicamente reconhecido (in Nascimento, Walter Viera do, Lições de História do Direito, 15ª Ed. ver. e aum. Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2007, p. 81-82).

Do ponto de vista técnico e específico, a obrigatio (obrigação) do direito romano externava, como externa a obrigação do direito moderno, um vínculo jurídico pelo qual o devedor ficava compelido a uma prestação para com o credor . No direito romano, as obrigações nasciam do contrato, do quase-contrato, do delito e do quase-delito, sendo que os contratos poderiam ser reais, consensuais, verbais e literais. No Código Civil Brasileiro são três as fontes declaradas: obrigações decorrentes dos contratos, obrigações por declaração unilateral da vontade e obrigações provenientes de atos ilícitos .

No Romance, a própria Lúcia conduz o relacionamento com seus amantes como se fosse uma relação contratual, ainda que verbal. Onde ficava acertado que qualquer das partes poderia terminar o relacionamento sem explicações, e uma parte não era dona da outra.

Observa-se também, o medo que os amantes casados tinham em ser vistos por suas respectivas esposas, na companhia de Lúcia. Até porque, na época o adultério era crime (artigo 240, do Código Penal Brasileiro, já revogado), apesar de existir a prostituição de forma bem frequente na sociedade.

No capítulo VI, em uma das festas na casa de um dos personagens, fala-se claramente sobre o uso e desuso da razão, e da luz, e passando a imperar as trevas e a loucura, fazendo referência a liberdade completa. Nota-se uma influência das idéias do racionalismo de René Descartes (1596-1650) .

No capítulo VII, em meio à bebedeira em uma festa na casa de um dos personagens, tenta-se fazer trocadilho com nomes e sugestão de pai e filha se relacionarem intimamente, e outra convidada da festa protesta, por que isso seria a simulação de um incesto , que segundo Lúcia, seria contra a moral.

O humanismo possui grande influência na obra do autor, que chega-se a nomear temporariamente o anfitrião da festa de “novo Erasmo ”, pois ele deixa claro que em um dado momento na festa, se deixaria de lado a razão e todos partiriam para um estado de loucura, porém sem olvidar da moral.

No capítulo VIII, Lúcia revela o caráter mercantilista da prostituição, onde fala claramente que se habituou a vender o seu corpo, e a desprezar o insulto que é ser prostituta.

No capítulo X, temos uma remissão ao desempenho pessoal de Lúcia com cortesã. O autor por meio do personagem chega a compará-la com as cortesãs gregas e às messalinas romanas .

Ainda no capítulo X, em meio as declarações de apaixonados, entre Lúcia e Paulo, vemos transparecer a influência de dois sistemas de governos existentes na história, primeiro a relação de senhor e servo(a) , eis que Lúcia se declara dona e serva de Paulo. Outro o sistema democrático , onde são definidos direitos e deveres. Em meio as declarações apaixonadas, Lúcia diz ter direitos sobre Paulo, só não sobre seus pensamentos. Comparando a relação com o sistema feudal, Lúcia é uma serva disposta a obedecer cegamente a Paulo. Já comparando com o sistema democrático, Lúcia já tem também direitos sobre Paulo, uma posição mais equitativa.

No capítulo XI, temos um desdobramento do romance entre Paulo e Lúcia. O amigo de Paulo, chamado Sá, alerta-o de que pessoas andavam falando que ele estava sacrificando Lúcia, vivendo à custa dela. Temos aí, um tipo penal que hoje está classificado no Código Penal como “calúnia e injúria” .

No capítulo XII, Lúcia ao saber da “calúnia” que a sociedade do Rio de Janeiro à época andava falando a seu respeito e de seu amante, protesta contra o fato de seu corpo ser tratado como uma coisa pública e o que tem não ser seu. Nem o seu corpo tem o direito de vender (prostituir-se), para fazê-lo, perdeu a liberdade de dar a quem lhe aprouver, ainda que seja um homem que ama. E reclama da injustiça social que esta sendo vítima. Percebe-se, o valor Justiça sendo reclamado por Lúcia, contra uma sociedade machista, patriarcal e preconceituosa.

Ainda no capítulo XII, o autor faz uma comparação entre a forma com que os homens da época exerciam influência sobre a vida de cortesã de Lucíola, com as formas de governo com que se controla o Estado. É argumentado pelo personagem Cunha, se o personagem Paulo queria mudar o sistema de governo daquele Estado (Lúcia), e transformá-lo em uma autocracia , em substituição aos reis constitucionais . E ainda ressaltando que já fora um rei constitucional sobre Lúcia. A queixa do personagem era para Paulo deixar ou facilitar um rodízio, quanto à subserviência dos serviços sexuais da cortesã Lúcia, pois para os demais personagens, Paulo estava usando Lúcia com muita exclusividade.

No capítulo XIII, é narrado um dos momentos de intimidade no qual fica bem clara a extrema submissão de Lúcia para com seu amante Paulo. A submissão é tanta que ela não fita nos olhos do seu homem-amante. Sendo que, neste aspecto é comparada a uma escrava, esperando para receber ordem de seu senhor. E Lúcia toma como ordem até mesmo os desejos que foram supostos por seu amante-senhor, uma nítida alusão ao sistema escravocrata de governar.
No capítulo XIV, em meio a revelação de ciúmes e brigas por conta dos comentário dos antigos amantes, Lúcia reafirma ser uma escrava humilde pronta pra obedecer, como prova de elevada submissão que tem por Paulo. Tudo pela paixão existente entre os dois.

No Capítulo XIX, percebemos como a qualificação jurídica da pessoa influenciava sobremaneira a vida privada das pessoas. O personagem Paulo ao ver outro homem, de nome Jacinto na casa de Lúcia, reclamou da presença dele. Porém, quando Lúcia explicou que era quase um criado, o ciúme passou na hora. Pois um assalariado era uma condição inferior, comparado a um homem da sociedade da época.

Ainda no Capítulo XIX, temos a narração de fato deprimente que já ocorrera nessa época e ainda continua ocorrendo nos dias de hoje com mais evidência, qual seja, a pedofilia, que hoje no Direito brasileiro é classificado como um crime. Lúcia ao narrar seu histórico de vida, relata como iniciou nos caminhos da prostituição, na vida de cortesã. Contou que devido sua família inteira ter caída enferma, foi buscar ajuda, e ao ver um homem relatou a situação de penúria que se entrava sua família. Este a convidou para ir a sua casa e lá chegando, deu para Lúcia algumas moedas de ouro. Quando Lúcia pediu mais moedas, ele a beijou. Como a família ainda precisava do dinheiro pra sobreviver, Lúcia voltou várias vezes a casa daquele homem. Em umas dessas idas, ele lhe violou e tirou sua honra de mulher, sua virgindade. Hoje esse fato é um crime altamente repudiado na sociedade brasileira, conhecido como pedofilia . E o pai de Lúcia ao saber ainda a expulsou de casa, jogando-a definitivamente na vida de cortesã.

No mesmo Capítulo XIX, é revelado o propósito da cortesã Lúcia no mundo da prostituição, qual seja, adquirir um dote para sua irmã mais nova, e futuramente um bom casamento e uma família feliz.

Mas adiante, no Capítulo XIX, Lúcia revela um fato interessante: sua morte jurídica com a falsificação de registro da certidão de óbito . Ela conta que morava com outra moça de nome Lúcia, que morreu de tuberculose. Quando o médico chegou para fazer o atestado de óbito Lúcia trocou o nome, disse que o nome da falecida era Maria da Glória, e ficou com o nome da defunta. Portanto, percebe-se que na verdade o nome de Lúcia é Maria da Glória. Observa-se que os pais de Maria da Glória leram o óbito dela no Jornal e chegou até a ir à sepultura, inclusive fazendo rezas sobre o cadáver que pensava ser de sua filha choravam pela morte, mas não tinham mais a vergonha de ver a filha na prostituição. Com isso, juridicamente a Maria da Glória não mais existia, porém de fato estava viva, mais com o nome de Lúcia.

No final do capítulo XIX, vê-se o respeito e admiração de Lúcia (Maria da Glória) pela instituição família, algo meio que hipócrita para a sociedade da época e da atualidade também. Lúcia confessa que se vendia de boa-fé, aceitava a prodigalidade do rico, porém se recusava a colaborar para a miséria e ruína de uma família.

Logo no início do capítulo XX, percebemos as características de uma sociedade ainda escravocrata, pois fica bem clara a subserviência do negro, quando Paulo informa que “A casa ainda estava fechada: o preto que a guardava veio abrir-nos o portão”.

No capítulo XX, vemos a preocupação com a propriedade que Lúcia tem, pedindo para Paulo regularizar a escritura de compra e venda que colocou no nome de Ana, sua irmã mais nova. Temos aí, a preocupação com o patrimônio , uma evidência muito marcante nas sociedades capitalistas.

No capítulo XXI, vemos um dos fatos mais delicados e graves que a mulher enfrenta, qual seja o aborto . Primeiro só do choque que Lúcia teve em saber que estava grávida teve um princípio de aborto. Ela então se recusou a tomar o remédio para abortar o feto, e quando tomou, não teve o efeito que pretendia.

Mesmo enferma Lúcia se preocupa em casar a sua irmã Ana, ainda menor de idade. E por isso, pede que Paulo a tome por esposa, e como ele reluta, pede que lhe sirva como Pai. Vemos a figura do Pátrio Poder e da cultura patriarcal , influenciando, mesmo no leito de morte de Lúcia, que antes de morrer pede para sua irmã ter Paulo como pai.

O livro encerra com o desejo de Lúcia sendo realizado. Ana casou e viveu feliz com seu marido. E Paulo lhe serviu de Pai, ou seja, a irmã teve tudo que Lúcia sempre quis: uma família feliz.

Conclusões
Ao fazermos a leitura do livro Lucíola, nos propusemos a observar os aspectos jurídicos e a cultura jurídica que a obra refletia. De fato, o trabalho foi sobremaneira produtivo, pois em um romance onde se tem como eixo principal dos fatos a relação de amor e paixão entre uma cortesã e um homem do século XIX, sem muitas posses, sem riquezas, pôde ser percebido muitos aspectos do direito vigente à época, assim como os cuidados com os aspectos jurídicos que os personagens demonstram. Além da cultura que povoava a mente da sociedade nesta época.
Procurou-se fazer uma investigação científica na obra usando um método expositivo e crítico, dos costumes e comportamentos à luz da cultura jurídica do século XIX.
Nesse sentido, em cada capítulo do livro procurou-se expor e observar na conduta dos personagens, a visão e a cultura jurídica, nos mais variados aspectos e ramos do direito. Encontramos influência e reflexo do direito constitucional, direito de propriedade, direito de família e do direito das obrigações no aspecto contratual.
Isto posto, percebe-se que as obras literárias são de grande serventia para um jurista, ou um historiador encontrar aspectos jurídicos, a exemplo do Livro Lucíola. Certamente, só as obras literárias não são suficientes para ter uma investigação científica aprofundada, contudo, esta preciosa fonte de informações jurídicas, que uma obra relata em seu conteúdo, não deve ser desprezada.
Esse artigo científico é uma prova de que as obras literárias revelam bastante a cultura jurídica de uma sociedade, em um dado momento da história da humanidade. Em cada capítulo ficou bem claro esse entendimento.
Portanto, o estudo da obra Lucíola, demonstrou a gama de informações jurídicas que encontramos em uma investigação desta natureza. Chamamos a atenção para este importantíssimo meio de investigação jurídica em obras literárias. O presente estudo só fez incentivar ainda mais para que outros juristas ou historiadores dêem mais atenção às obras, através de uma leitura das condutas dos personagens à luz do direito na história e suas diversas fases.







Bibliografia
Castro, Flavia Lages de, História do Direito Geral e Brasil, 3ª Edição Revisada, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006.
Nascimento, Walter Viera do, Lições de História do Direito, 15ª Ed. ver. e aum. Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2007.
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Greco, Rogério, Curso de Direito Penal: Parte Especial, Volume II, Ed. Imperius, Rio de Janeiro, 2009.
Prado, Danda, O que é o aborto, Abril Cultura Editora Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, 1985.
DAZZI, Camila. “A IMAGEM DA DEVASSIDÃO. A mulher fatal que povoava a mente masculina no final do século XIX é representada no quadro “Messalina”, de Henrique Bernardelli. Revista de História da Biblioteca Nacional. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=2807. Acesso em 24.Março. 2011.
MOURA, Mario de Assis. Manual dos Escrivães do Cível. 1a. ed. São Paulo, Editora Saraiva & Cia. 1934, p. 07. Capturado do site http://www.arpenbrasil.org.br. Disponível em: http://www.arpenbrasil.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=28&Itemid=44. Acesso em: 24.Março.2011.

Um comentário:

Anônimo disse...

ótimo resumo. ameei